ONDE TUDO COMEÇA

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terça-feira, 27 de março de 2012

MEU CONTO DE FADAS OU COMO ME TORNEI UMA WICCA

O FEITIÇO DA LUA  

OU 

O DESPERTAR DA FEITICEIRA


"Bruxa é a mulher que se permitiu 
ouvir sua voz interior;
que deu vazão à sua sensibilidade natural, percebendo que  a vida
é muito mais que esperar a morte.
A bruxaria é a arte 
de transcender o concreto; 
de criar sonhos e torná-los reais."(desconheço a autoria)


PARTE I
Magia, Poder e Sedução: Onde tudo começa


Era uma vez uma poderosa e linda rainha que vivia num castelo à beira de um lago. Ela era gentil e boa. Todos os seus súditos a amavam muito. Numa bela manhã de sol, como de habitual, ela despertou ao som das cigarras e grilos cantantes. Espreguiçou-se lentamente, revolvendo os lençóis de cetim e almofadas de nácar. Levantou-se devagar, calçou os chinelos de cetim bordados com fios de  prata e  ametistas e dirigiu-se para o salão dos espelhos. A manhã era luminosa e seu dia acabava de nascer. 
Ao tentar mirar o lindo rosto na bacia de cristal espelhado para em seguida enovelar os lindos cachos madriguais, dando início aos rituais do dia teve uma surpresa: diante da redonda luz da bacia de prata nada lhe aparecia. A superfície lisa estava cega. E mais que cega, surda, muda, pois, nada lhe devolvia. Nem um  leve movimento sequer, nenhum som... Nem mesmo uma longínqua nesga de nuvem ou um risco de bordado, ou um ponto ou nó da Tapeçaria do Destino na qual Ela cuidadosamente vinha bordando a trama de sua vida, fio-a-fio, cor-a-cor, ponto-a-ponto, face a face... Perplexa e ligeiramente assustada, olhou mais uma vez... Nada... nem mesmo o pálido brilho de uma gota de orvalho da noite remanescente num galho de jardim a refletia na manhã que surgia... Dentro do redondo do espelho de luz, tudo parecia cego, embaçado como se o próprio hálito ou sua respiração conspirassem para turvar a imagem que ela queria ver de volta. Assustada, voltou aos aposentos reais e buscou o espelho de águas marinhas... Correu para o beiral da varanda mais próxima  e buscou mirá-lo contra a luz do sol... Queria um reflexo, uma sombra um traço sequer que lhe devolvesse um fio da linha da sobrancelha, ou o contorno da boca ou as encarnadas maçãs do rosto ou mesmo o nariz afilado com que sempre tanto implicara... Mas... tudo que viu... foi nada! O espelho refletia apenas um grande lago de águas densas imerso no seio de uma grande floresta... de dentro dele emergiam de uma lama espessa, viscosa e ardente, cor de chumbo esbranquiçado, bolhas que pareciam de sabão, flutuantes, incertas, ligeiras que subiam vagarosamente e, sem destino, ondulantes... Tremulando, ganhavam o ar e em seguida se desmanchavam ao vento... Todo o ar era quente e exalava a  ovo podre... Mas dela mesmo, do seu rosto, seus cabelos, nenhum reflexo... Nenhuma sombra... Nenhum vulto...  Nenhum rasgo de giz seco a desenhar o contorno do olhos  ou as linhas do horizonte dos lábios que sempre lhes lembrara uma gaivota riscando o ar... Sem querer acreditar, tentou mais uma vez, desta feita forçando bem o olhar. Inúteis todas as tentativas. Passou a mão por sobre a face lisa do espelho, soprou   com seu hálito quente e ainda perfumado da noite a superfície da luz de prata, limpando-a com a fralda da anágua de dormir... Mas, nada!  Tocou então seu rosto com as pontas dos dedos buscando  confirmar sua existência e perceber a sua pele macia. E lá estava ele, com sua tez lisa como um veludo. Sem querer acreditar no que via e sentia, dirigiu mais uma vez seu olhar para o espelho e tudo que viu foi um rosto ausente. Ligeiramente aflita, murmurou: - Imagem minha, Imagem minha, onde estás que não me respondes? Tentando se acalmar, disse para si mesma: Ah, mas não é possível... Será que estou sonhando? Será que ainda não despertei? Será que o dia ainda aguarda por raiar? Será que hoje o sol se atrasou na linha do horizonte? Será que... Teimosa que era, beslicou-se para descobrir se estava viva e acordada ou se estava vivendo mesmo um enorme pesadelo... Sentiu a dor de suas unhas cravando-lhe a pele... era uma dor real... Respirou fundo, contou até dez, contemplou as montanhas azuladas ao longe e disse para si mesmo: É, amado espelho... acho que estás ficando é velho, cansado, temperamental, variando conforme as mudanças do tempo, das estações...  confundindo dias de verão com sagradas noites de inverno... Mas... vamos lá: tudo que tens a fazer é fazer amanhecer meu reflexo nesta ensolarada manhã! Ela tentava se acalmar com palavras, mas estas não a convenciam. Apreensiva lembrou-se que, inúmeras vezes, fora surpreendida com sua imagem projetada no plácido lago do jardim, cujos chafarizes continuamente jorravam a mais pura água da fonte... Descalça correu para lá. Nenúfares brincavam na água matutina ornada de uma fina rede de fios de prata tecida pelo orvalho da noite. Ela se dirigiu ao lago perguntando:
- Lago, lago,  suplico-vos, me diga, por favor! Viste, por acaso, meu reflexo bailando em suas águas enquanto eu dormia? 
E o lago respondeu: - Oh, divina rainha, vosso reflexo não costuma vir me visitar à noite!
-Eu sei, eu sei... é que hoje, por acaso, está sendo diferente... Não consigo achá-lo... acho que ele se perdeu de mim...
Límpido e sereno o lago tornou-lhe a responder: 
-  Ah sim, Majestade, seria um enorme prazer ter vosso reflexo comigo durante a noite e poder devolvê-lo a vós, agora, pela manhã, mas... adorada deusa... infelizmente... nada tenho a vos oferecer...
 
Ela saiu desesperada correndo em direção à mata fechada. Passando por beija-flor no alto galho de um jasmineiro perguntou-lhe: - Oh, amor de pássaro, por acaso viste andando por aí, minha imagem. Ando a procurá-la por todos os lugares. O pássaro lhe respondeu: - Majestade, hoje pela manhã bem cedo vi uma sombra que me pareceu uma imagem descendo por aquele córrego mais próximo que vai em direção à floresta.  Agradecendo ao pássaro, ela então saiu correndo em direção ao córrego e já aflita, pois a água batia ligeira descendo e escalavrando as pedras e a tudo desmanchando em espumas. 
  • Meu Deus, pensou! Será que ela aqui se perdeu, será que se partiu em mil pedaços, desviou-se, seguiu corredeira abaixo? 
Levantou um pouco da bainha da saia, meteu os pés na água e pôs-se cuidadosamente a procurar pela imagem perdida fitando com atenção cada remanso, cada refluxo, cada redemoinho. Sem perceber e sequer se dar conta do fio das horas, foi seguindo a correnteza do riacho e se embrenhando floresta adentro.  Por muito tempo andou e acabou por chegar ao leito de um rio seco, coberto de pedras. Ali, sem querer, encontrou uma nesga daquilo que fora um dia sua imagem, despedaçada sobre  um cascalho. Recolheu o pouco que dela sobrou, colocou-a junto aos seios e começou a chorar. Seus pés feridos a faziam sentir mais raiva ainda. Esbravejou, xingou céus e terra. Como aquilo pudera acontecer-lhe? E com que direito? Logo com ela, sempre tão cuidadosa, tão atenta? O que fizera de errado? Seria um castigo dos deuses e por quê? Abaixando-se, pegou algumas pedras na mão e começou a atirá-las longe, a esmo, em atitude de  desabafo e revolta. A cada pedra que atirava, soltava um urro que era um misto de dor e fúria ao mesmo tempo. Logo as sombras da noite não tardaram a chegar e com elas a escuridão, o frio, o cansaço, a fome. Mahr, era este seu nome, andou um pouco mais na densa floresta iluminada por uma pouca réstia de luz do dia que morria. Alcançando o pé de uma grande árvore cujo tronco oco, coberto por heras e musgos era muito largo, recolheu algumas folhas secas e ali forrou o chão formando uma cama de folhas para pernoitar. Adormeceu. Em seus sonhos ela implorava pela piedade dos ventos, das rochas, das águas, das nuvens, de todos os seres viventes, de todos os espíritos ancestrais... A todos fazia promessas pedindo que lhes trouxessem sua imagem inteira de volta... Mas seus sonhos enovelavam-se e desmanchavam-se no ar feitos bolhas de sabão sopradas ao vento... Desanimada, começou a chorar. Lágrimas torrenciais caíam-lhe pela face e, de repente, sem perceber, despertou. Viu-se, agora, diante de um estreito, tortuoso e escorregadio caminho em declive no meio da floresta, pavimentado por folhas secas, musgos e raízes de árvores diversas. Seguindo por ele, ela foi dar numa gruta. A entrada da mesma era pavimentada por ossos de animais. Havia uma escada que era ladeada por um muro que também era feito de ossos. Ela começou a  descer em espiral, como se estivesse adentrando um túnel estreito. Tateava na escuridão. Nas paredes da gruta havia pequenos orifícios. Ruídos de pequenos animais se faziam ouvir. Filetes de cabelo pareciam dançar e roçavam sua pele. Alcançando o último degrau da escada, um pio de  coruja estremeceu o ar. De repente, a sua frente, ainda na escuridão, um grande olho azul se pôs a fitá-la. Ele piscou três vezes para ela e desapareceu. Ela se viu então transportada para o meio da caverna. Do teto da mesma desciam estalactites transparentes e brilhantes. Havia musgos, vapores e umidade no ambiente, A temperatura era morna e acolhedora. Uma luz débil apareceu ao fundo e junto com ela o vulto de uma pessoa. Era uma mulher. Ela era velha e estava vestida de negro. Sua pele era bem enrugada. Ela tinha longos cabelos grisalhos que estavam também cobertos por um negro chapéu. Ela trazia em suas mãos de dedos enormes diversos anéis de caveiras e serpentes. No pescoço, um cordão de ouro e prata com um pingente em formato de uma coruja. Ela sorriu para Mahr. Mahr reparou, ainda, que seus dentes eram muito alvos, seus olhos grandes, negros e  de brilho penetrante. A mulher lhe disse: - Eu já estava esperando por você!  Sua voz era baixa e rouca.
Mahr abriu os lábios para falar qualquer coisa, mas a velha lhe fez um aceno, dizendo: - Oh, não se preocupe! Nunca é tarde para se abrir aos apelos da natureza... Tudo o que você tem a fazer é tomar posse de si mesma! Vamos  aos trabalhos!
A mulher então se dirigiu para o centro da caverna, traçou um círculo no chão com uma bastão que lembrava uma enorme colher de pau e fez surgir uma grande fogueira com um caldeirão  de ferro contendo água fervente dentro dele. Mahr ficou observando em silêncio. De repente, sob a luz que a fogueira projetou no interior da caverna, ela percebeu, pelo seu lado esquerdo, uma caveira. Ela tinha seu tamanho. Em seus olhos havia dois grandes diamantes que resplandeciam à luz do fogo ora aceso. Ela estava completamente imóvel, mas parecia estar cheia de vida e a tudo observar. No caldeirão com água, a fumaça intensa impregnava o ar com um  cheiro de enxofre. A velha  folheou cuidadosamente as páginas de um enorme livro negro cujas letras e bordas eram de ouro e em seguida, deu início aos trabalhos. Com o auxílio da enorme colher-bastão, foi pronunciando em voz alta, rouca e  de uma gravidade que parecia vir de suas das entranhas, palavras mágicas à medida que jogava uma série de ingredientes no caldeirão:
-  Asas de Morcego, Coração de Boi, Barriga de Sapo! Abracadabra! Que todos os caminhos se abram! Sangue de Moça Virgem, Rabo de Escorpião, Moscas Mortas! Alakasan! Que todos os bons ventos soprem a favor! Terra de Túmulo, Elfos Negros, Ossos Moídos, Beijo da Sereia e Lágrimas de Moça! Hocus Pocus! Que todas as rochas respondam, e todas as espirais se abram que os todos círculos se fechem! Que morra o que tiver que morrer! Que nasça o que tiver que nascer! Que assim, seja! Que assim se faça! Até o final dos dias!


Em seguida ela colocou um pouco da poção numa pequena cabaça alaranjada, salpicou um pó que retirou de um cipó verde sobre a mesma e ofereceu a Mahr que a bebeu num gole só. A mulher então se pôs  a tocar um tambor e a entoar um canto que foi crescendo lentamente. Mahr sentiu seu corpo todo ir sendo invadido por uma onda de arrepios.  Sua cabeça começou a girar. Ela despiu  suas vestes e nua se pôs a dançar. O crepitar do fogo aumentava e o som do tambor crescia ritmado enquanto a velha ia cantando cada vez mais e mais alto e Mahr agora começava um bailado à volta da fogueira. Sua cabeça girava, olhos e bocas entreabertas, luzes, vibração...os pés saltavam no ar, as pernas cavalgavam o espaço e logo em seguida, o ventre tremia, embalado pelas ancas que giravam e se contorciam, ondulantes. Os braços se movimentavam soltos, abraçavam o corpo,  giravam no ar e retornavam roçando a pele com prazer, tocando os seios,  seus bicos empinados, o pescoço, o rosto afogueado... Os ombros tremiam, a cabeça meneava para frente e para trás e girava, liberando o pescoço. E ombros e braços e seios e ventre e quadris e pernas se movimentavam em diferentes direções. Sua pele ardia, suas ancas vibravam... ela soltava gemidos de prazer... o suor escorria-lhe pelo corpo tornando sua pele ainda mais macia e com um cheiro adocicado... De seus lábios entreabertos saíam murmúrios... A caveira  até então quieta, começou a se mexer lentamente vindo em sua direção. Ela parecia sorrir para Mahr... e se pôs a dançar como uma sombra ao seu redor. Mahr a olhava e com ela brincava e a seduzia com seus olhos, sua língua, sua respiração e todo o seu corpo em lânguidos movimentos... A caveira então se aproximou mais. Suas mãos roçaram levemente as costas de Mahr. Um leve arrepio percorreu cada vértebra de sua espinha dorsal... seu corpo inteiro começou a ondular como dunas no deserto ao som dos ventos sibilantes, suas ancas subiam, desciam, se projetavam para frente, para trás como se obedecessem ao movimento das marés...  A caveira se aproximou um pouco mais, sussurrou algo em seu ouvido e ela então soltou uma sonora gargalhada que ecoou no espaço... seu corpo continuava dançando, os sons que ela agora emitia eram roucos e ela tocava o próprio corpo, apertando os seios, passando as mãos pelo ventre e coxas... percorrendo outros caminhos,  outras direções,  mudando os sentidos, experimentando novas sensações... Seus dedos ágeis e ávidos enfiavam-se ligeiros por entre a vulva lisa, quente, úmida, crescida... tocavam os pelos, a pele escorregadios pelo suor... a pelve nua se contorcia, pulsava, o corpo gemia de prazer, vida, calor,  umidade... Gotas de água jorravam das rochas que formavam o teto da caverna... no ar o som ritmado do tambor, das maracas e dos chocalhos tornavam o ambiente sagrado... Mahr dançava e girava num ritmo cada vez mais rápido e mais frenético quando, de repente soltou um grito e desfaleceu ao chão. Todos os sons cessaram. Fez-se por alguns minutos um enorme silêncio no interior da caverna. No canto esquerdo, agora a caveira podia ser vista descansando, muda, sem vida, como se estivesse lá já adormecida há anos... No ar, um cheiro bom de musgos e terra molhada. Lentamente Mahr começou  a se erguer do chão, abriu os olhos agora com um brilho novo, o rosto corado, o corpo iluminado por uma força e energia diferentes. Ele trazia consigo sabedorias ancestrais. Era não só sábio, mas também inteligente. Era um corpo pleno de vida. Sentia fome, sede, frio, calor. Sofria e gozava. Pal-pi-ta-va! Mahr conseguia perceber suas bilhões de células inteligentes, todas vivas, conscientes se movimentando... elas possuíam uma vida secreta composta por um mosaico de poderes  extraordinários até então por ela ignorados e inexplorados.   A velha então falou para Mahr: - Depressa, você já está pronta! Não há mais tempo a perder. Deves partir. Tens muito que fazer. Deverás realizar todos os trabalhos antes do despontar dos primeiros raios de sol... Mas não temas... as noites ainda são de inverno e longas...  Tome isto. Use-os na sequência que estou lhe dizendo: pó de ostra, pétalas de flor de cactus, sal do deserto, sementes de dentes de leão, pedra de enxofre, ramo de alecrim,  e flauta de marfim. Você deve entrar na Montanha dos Olhos Verdes, matar o dragão negro, apagando a tocha de fogo que o alimenta. Em seguida, dirija-se à  Montanha da Lua de Marfim e Nácar e derrube a teia da aranha gigante que deverá também ser morta nesta empreitada. Tudo isso deve ser feito antes que os primeiros raios de sol despontem na linha do horizonte. E um aviso a mais: se os olhos do  dragão e da aranha estiverem abertos é porque estão dormindo, se estiverem fechados é porque estão acordados. Volte sempre que precisar. Estou sempre aqui! Agora,tome posse de seu poder e vá!  E batendo a batuta no ar, fez aparecer um enorme unicórnio negro alado  e uma grande Coruja que logo pousou no ombro de Mahr. Agradecendo a velha senhora por tudo, ela  montou no unicórnio alado e imediatamente  partiu na noite escura.



PARTE II
Destruindo que tem que ser destruído


Voando na noite, auxiliada pelas asas velozes do unicórnio, Mahr logo alcançou a Montanha dos Olhos Verdes. Ligeira ela descobriu a entrada que a conduziria ao ventre da mesma. O caminho, porém era estreito e todo pavimentado por raízes de árvores que se projetavam formando uma espécie de degraus. Cautelosa para não tropeçar , ela caminhou a passos lentos. À medida que adentrava a gruta, ia percebendo o clarão das labaredas que de dentro dela vinham. Era grande o calor. O suor começou a escorrer-lhe pela fronte. No chão havia galhos mortos e retorcidos de árvores. E muitas folhas secas. Seus passos faziam barulho ao pisar nas folhas. Ela praticamente arrastava os pés com cuidado para não despertar o monstro que já avistara e cujos olhos se projetavam para fora, arregalados e pareciam duas enormes bolas de gude. Ele tinha a boca aberta. Podia-se ver sua língua que, de tão grande parecia não caber em sua boca, projetando-se para fora. De suas mandíbulas entreabertas viam-se os enorme dentes em forma de serra. Seu corpo gigante era da mesma cor cinza chumbo, do lago borbulhante que ela contemplara no espelho. A fera tinha uma enorme cauda que mais parecia a barbatana de um peixe gigante. Era essa cauda que dava mobilidade e agilidade ao bicho.  Ele parecia pesar uma tonelada. Seu aspecto era medonho. Mahr esgueirou-se cuidadosamente pelas paredes da montanha, deu cinco passos largos adiante, alcançou a tocha bem no centro da gruta e lentamente foi recuando. A fera permanecia imóvel com os enormes olhos arregalados. Mahr foi se afastando devagar e cuidadosamente, porém, quando já estava quase a alcançar a saída da caverna, tropeçou numa das raízes das árvores e caiu fazendo um barulho surdo. Imediatamente ouviu-se um enorme crepitar de folhas secas ao fogo. Eram os olhos do monstro despertando.  Daí em diante foram urros, labaredas gigantes, calores infernais. A fera furiosa se projetava em direção à Mahr tentando alcançá-la. Mahr segurava a tocha na mão esquerda e com a direita buscava os saquinhos de veludo que a feiticeira lhe havia dado. O calor era infernal. Ela tinha a sensação de que não iria suportar. A fera se movimentava furiosa em sua direção. Quando já estava quase a alcançá-la, Mahr lançou sobre ela o saco contendo o pó de ostra e imediatamente um denso nevoeiro se formou e gotas como de orvalho refrescaram o ambiente e turvaram a visão da fera que recuou para em seguida novamente avançar. E já estava novamente quase a alcançar o corpo de deusa-rainha-guerreira com sua língua de fogo, quando ela atirou-lhe as pétalas de flores de cactus e poderosos e venenosos finíssimos dardos cruzaram o ar e penetraram na dura carapaça da fera que mais uma vez se contorceu de dor, mas não morreu Mahr, então, atirou-lhe o saco de sal  e viu a fera se transformar numa estátua petrificada que aos poucos foi se desmontando e seus pedaços ao caírem no chão da caverna eram tragados pelos poros da terra. Ligeira, Mahr correu em direção à saída. Lá fora o unicórnio a esperava. Ela subiu nele rapidamente e junto com sua Águia da Noite,  voaram em direção à Montanha da Lua de Marfim e Nácar.  Ao lá chegarem Mahr demorou a encontrar a entrada da montanha. Estava muito escuro ainda e a lua ainda crescente no céu deixava cair apenas um brilho muito suave sobre a montanha adormecida no seio da densa floresta. Ela ordenou ao Unicórnio que desse três voltas ao redor da mesma. Mas nada descobriu.  Desceu e começou a olhar cada greta à volta com cuidado. Foi quando viu que ao pé da montanha havia uma velha figueira com enormes raízes e em seu tronco coberto de musgos e hera havia uma pequena cavidade de onde saía um fraco vapor azulado. E também estranhos sons como se fossem grunhidos. De repente, um cheiro forte de musgos e madeira penetrou-lhe as narinas e o orifício da árvore pareceu se expandir um pouco mais. Mahr pensou que seria uma boa idéia tentar entrar por ali. Cumprimentou a velha árvore e pediu-lhe permissão para penetrar em seu interior. A árvore lhe ofereceu uma passagem ainda mais larga. Seus veios se dilataram e Mahr foi conduzida ao seu interior por um túnel carregado por uma seiva branca e escarlate que depois ela descobriu ser um rio subterrâneo no ventre da montanha. À chegada de Mahr, a aranha gigante começou a se movimentar. Ela parecia já estar esperando por Mahr. Era atenta e captava os movimentos de Mahr mexendo suas antenas. Seus múltiplos olhos gigantes pareciam enxergar muito pouco, mas eram assustadores... Suas antenas, porém, eram poderosas e sensíveis ao calor, ao movimento e à luz. Era preciso ser rápida, pensou Mahr. As patas negras lembrando um caranguejo pareciam poderosas e se mudavam rápido de posição. A teia em que se apoiava era composta de filetes luminosos que cintilavam na pouca luz. A fera rapidamente se ajeitou e partiu para o ataque. Usando um dos fios de sua teia, lançou-se veloz em direção a Mahr que mal teve tempo de  jogar-lhe em cima as sementes de dentes de leão. Imediatamente inúmeros dardos venenosos cravaram o corpo da aranha que se contorceu ligeiramente de dor, mas continuou em seu ataque. Mahr já não dispunha de tantos venenos. Ficou meio que aturdida, sem saber o que fazer. Foi quando a Águia da Noite veio em seu auxílio. Inflou seu corpo, eriçou as penas, estalou o bico e lançou-se sobre o monstro com suas potentes garras e bico encurvados. O bico afiado rasgou os olhos da peçonhenta enquanto suas garras certeiras imobilizaram alguns de seus tentáculos. Pedaços das entranhas da fera estraçalharam-se no ar, enquanto a ave regurgitava pelos cabeludos pelo ar. A peçonhenta fera ainda resistia e tentava dar ferroadas no pássaro que se desviava, levantava voo e voltava novamente a atacar com precisão certeira. Um das patas da aranha se enroscou numa das pernas da ave tentando aprisioná-la e enredá-la na teia.  Mahr lançou as folhas de urtiga em sua direção e pegando a pedra de enxofre, partiu-a em dois pedaços e esfregou rapidamente um no outro. Presença de poderosas vibrações elementais se fizeram sentir no ambiente, purificando-o. No ar infinitas bolinhas de fogo se materializavam e penetravam o corpo da fera já agonizante. Mahr soprou a flauta de marfim com toda a força de seus pulmões e a teia se partiu em mil pedaços. Com o ramo de alecrim na mão ela perfumou o ambiente. Inúmeras formigas gigantes  surgiram e começaram a levar as partes mortas do bicho para fora do interior da montanha para serem destruídas.


PARTE III
O que sempre deve viver


Quando tudo acabou, Mahr respirou aliviada. Agradeceu a proteção de sua Coruja Gigante e traçando um círculo de prata no chão da caverna, dela saiu por uma estrada estreita pavimentada de pedrinhas de brilhante que surgiu a sua frente. Do lado de fora, o Unicórnio a aguardava. A  águia da noite subiu em seu ombro direito e juntos os três partiram na noite veloz. O negro unicórnio agora a levava para passear pela noite estrelada. Ele a conduziu até o deserto inundado de areias e estrelas. Voava ligeiro e ela sentia a vibração do ar no silêncio da noite. O perfume da brisa noturna, e o cheiro suave de florestas invadia-lhe as narinas. Seu peito pulsava no ritmo das marés. Ao longe, os contornos das dunas desenhadas nas areias curvas pareciam grandes ondas. O unicórnio então a conduziu até um precipicio, mas ela, estranhamente, não sentiu medo. Um vento muito forte se pôs a varrer as areias do deserto e ela viu um enorme buraco se abrindo no chão. Ela ordenou então ao unicórnio que voasse o mais alto que pudesse. O animal obedeceu. Do alto ela viu que o buraco nada mais era do que um grande espelho sustentado por dois golfinhos dourados. Nele, além de seu rosto, Mahr via seu corpo por inteiro refletido ao luar. Era um corpo belo, vigoroso e apaixonado. O unicórnio foi se afastando até alcançarem uma torre toda de vidro. Ali ele deixou Mahr, e fazendo-lhe uma reverência, levantou voo e partiu, dizendo-lhe adeus. Ao sair, porém, deixou cair de presente uma mecha negro-azulada de sua crina. Ao abaixar para apanhar a mecha negro-azulada do animal, Mahr então descobriu que estava no beiral da varanda de seu quarto. Ao tocar no presente, o mesmo se transformou numa vassoura voadora, que começou a rodar em volta de Mahr como se a convidasse a montar. Mahr sorriu-lhe e disse: Oh, sim! Agora não! Hoje à noite! Com certeza! E então soltou uma sonora gargalhada. Ao retornar aos seus aposentos, sobre a cama, viu um enorme livro escrito em letras douradas: LIVRO DE RECEITAS. Sobre ele uma colher de pau, e uma folha branca de papel onde se lia:  


À mais nova Aprendiz de Feiticeira com votos de que ela sempre se lembre de que a magia nunca deixa de estar no ar. Ela habita as águas, o sol, cada minúsculo grão de areia, as pedras, as folhas, cada semente, os fundos dos rios, o ciclo das estações, a pulsação das marés, as fases da lua, a vibração das correntes, o ventre fértil das montanhas, os animais em suas mais variadas espécies e todas e quaisquer formas de vida, sejam elas orgânicas ou inorgânicas... Trace  suas espirais, apaixone-se pela vida em todos os seus aspectos, encontre seu ponto de equilíbrio;  procure na Natureza seus pontos de luz e força e permita que eles se abram dentro de você e magicamente a transportem pelos ares sempre que o tempo fechar, o dia nublar e o sol se esconder! O feitiço da lua está dentro de você, Mulher! 


Ao acabar de ler as últimas palavras, Mahr teve a impressão de ter ouvido o som de uma sonora gargalhada e correu à varanda para olhar o céu: lá fora uma enorme lua cheia magicamente brilhava e projetada sobre ela um vulto negro de mulher riscava ligeira os céus que começavam a amanhecer! 

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